Introdução
O cancro da cabeça e pescoço (CCP) é o sétimocancro mais comum a nível mundial1. Para além disso, a sua incidência está a aumentar, com um incremento previsto de 30% até 20301,2. Aproximadamente 90% dos CCP são carcinomas epidermoides, também designados espinocelulares (CEC), que surgem do epitélio da cavidade oral, faringe e laringe3.
A ocorrência de segundos carcinomas primários nestes doentes é relativamente alta, variando entre 3 e 7% ao ano4,5. Pela complexidade local, a excisão dos CCP resulta frequentemente em defeitos extensos e com impacto funcional significativo, requerendo uma reconstrução tecidular imediata.
Em doentes em que já foi realizada excisão de um CCP e reconstrução, o surgimento de um segundo carcinoma pode criar um desafio cirúrgico de recessão do tumor e realização de uma nova reconstrução bem-sucedida.
Caso clínico
Neste trabalho apresenta-se o caso de uma paciente de 53 anos que é referenciada a uma consulta de estomatologia por uma lesão ulcerada do palato direito com cerca de 20 mm. Esta paciente tem como antecedentes de relevo hábitos tabágicos, fumando cerca de 10 cigarros por dia desde os 20 anos de idade, o que perfaz 16,5 unidades maço ano.
É realizada uma biópsia da lesão mencionada cuja análise histológica revela um carcinoma espinocelularbem diferenciado e displasia de alto grau. Procedeu-se ao estadiamento clínico com tomografia computorizada (TC) maxilofacial, cervical e torácica e ortopantomografia. Realizou também ressonância magnética nuclear (RMN) maxilofacial que descreveu uma lesão de 17 mm centrada no terço médio e posterior do palato duro direito, e admitia invasão óssea nos planos adjacentes à lesão. O estudo não revelou suspeita de metástases ganglionares regionais ou à distância.
Em consulta de grupo multidisciplinar foi decidido tratamento cirúrgico. A doente foi submetida a hemimaxilectomia direita com esvaziamento ganglionar cervical direito seletivo dos grupos I a III e reconstrução imediata com retalho livre osteocutâneo de perónio direito. O retalho foi anastomosado à artéria facial e a tributárias da veia jugular interna. O perónio foi usado para substituir a maxila excisada (Fig. 1) e a palete cutânea para substituir o revestimento intraoral.

Figura 1. Reconstrução tridimensional a partir de TC maxilofacial realizada ao 5.º mêspós-operatório. Na linha média, é possível observar a consolidação entre o perónio e o rebordo alveolar da maxila nativa.
A análise das peças cirúrgicas revelou um estadiamento patológico pT1N06 e a recessão foi completa (R0). Em consulta de grupo foi decidida a não-realização de tratamento adjuvante, optando-se por vigilância clínica e imagiológica apertada.
No 6.° mês pós-operatório, em consulta de seguimento, foi identificada nova lesão papilomatosa no trígono retromolar à direita (Fig. 2). Esta lesão foi biopsada e diagnosticado um segundo CEC primário. Realizou novo estadiamento com TC maxilofacial, cervical, torácico e uma tomografia por emissão de positrões (PET). Estes descreviam uma lesão de 16 mm no trígono retromolar direito que contactava com o ramo da mandíbula ipsilateral e com o rebordo alveolar do 4.° quadrante. Novamente sem suspeita de doença metastática locorregional ou à distância.
Em consulta de grupo para discussão do tratamento desta segunda lesão foi decidido proceder a excisão cirúrgica. Procedeu-se à realização de mandibulectomia segmentar direita com exérese do rebordo alveolar adjacente e reconstrução microcirúrgica com retalho livre osteocutâneo de perónio esquerdo (Fig. 3). Este foi anastomosado à artéria tiroideia superior, à veia jugular externa e à veia jugular interna de maneira termino-lateral.
A recessão foi também completa (R0), foi feito o estadiamento patológico das peças cirúrgicas pT2N0, e decidido em consulta multidisciplinar manter vigilância clínica e imagiológica.

Figura 2. Carcinoma Espinocelular do trígono retromolar direito.

Figura 3. Imagem intraoperatória da segunda recessão tumoral, após a mandibulectomia e com o retalho osteocutâneo de perónio posicionado intraoralmente. Observa-se a palete cutânea do primeiro retalho osteocutâneo já mucolizada (seta) e a palete cutânea do segundo retalho (estrela).
Ambos os pós-operatórios decorreram sem intercorrências, com retorno à alimentação oral em poucas semanas e as paletes cutâneas transferidas mucolizaram em poucos meses (Fig. 4). Não houve impacto na marcha, com boa cicatrização das zonas dadoras dos retalhos livre (pernas).
Aos seis meses após a segunda intervenção cirúrgica, a doente encontra-se sem sinais de recidiva ou de novo carcinoma.

Figura 4. Imagem intraoral quatro meses após a segunda exérese tumoral e reconstrução.
Discussão
Este caso clínico ilustra os desafios e as potenciais soluções terapêuticas em doentes com CEC oral, particularmente em situações de segundos tumores primários com necessidade de recessões cirúrgicas extensas e reconstruções complexas.
A ocorrência de um segundo carcinoma primário em doentes previamente tratados por um CEC oral é relativamente comum, sendo atribuído às consequências da exposição prolongada aos fatores de risco conhecidos, como o álcool e o tabaco7,8, e ao efeito de carcinogénese de campo9,10. Estudos indicam que a taxa anual de segundos carcinomas primários orais varia entre 3 e 7%4,5. Neste caso, a paciente desenvolveu uma nova lesão no intervalo de seis meses, ficando dúbia a identificação como tumor síncrono ou metácrono e sublinhando a necessidade de monitorização frequente. Em reunião multidisciplinar considerou-se este um segundo carcinoma primário e não uma recidiva, atendendo às localizações dispares das duas lesões, uma no palato e outra no trígono retromolar.
Ambos os CEC diagnosticados nesta paciente tinham suspeita imagiológica de invasão óssea, o que levou à decisão de realizar hemimaxilectomia e mandibulectomia segmentar. Esta excisão resultou em defeitos extensos com necessidade de reconstrução tecidular imediata.
A reconstrução após a exérese de carcinomas orais deve ambicionar manter as caraterísticas essenciais para a funcionalidade da área, nomeadamente uma mucosa oral maleável para permitir a abertura oral, uma língua móvel para fonação e deglutição e um pavimento da boca que consiga reter alimentos e saliva. Da parte óssea, almeja-se uma mandíbula e maxila estáveis para mastigação11.
No caso apresentado, a transferência microcirúrgica de tecido distante vascularizado, na forma de retalholivre com componente óssea para substituição da mandíbula e maxila e componente cutânea para substituição da mucosa oral fornecia a melhor hipótese de conservação das funções inerentes à região oral.
O perónio vascularizado proporciona também uma base sólida para a colocação de implantes dentários, considerada o objetivo final da reabilitação oral12.
Por outro lado, a realização de um retalho livre, neste caso osteocutâneo de perónio, embora com um sucesso global superior a 95%13, é uma cirurgia tecnicamente exigente e com riscos conhecidos. Nestes incluem-se dor, hematoma, infeção de tecidos mole ou osteomielite, lesão nervosa, limitação na marcha, deiscência com exposição óssea, tendinosa ou de material de osteossíntese e ausência de consolidação óssea14,15. A complicação mais temida é a trombose arterial ou venosa com consequente necrose parcial ou total do retalho mas, atualmente, a sua incidência é inferior a 5%16.
No caso descrito, ambos os pós-operatórios decorreram sem complicações. A paciente retornou à alimentação oral, um dos intuitos principais, em cerca de três a quatro semanas após as intervenções e manteve uma marcha indolor, em concordância com a literatura que descreve uma baixa morbilidade da zona dadora deste retalho16.
Em suma, nos pacientes submetidos a tratamento de um CCP, uma vigilância clínica e imagiológica rigorosa revela-se crucial para a gestão atempada de recorrências ou de segundos carcinomas primários.
Quanto às opções terapêuticas, uma excisão agressiva e reconstrução com tecido distante vascularizado, apesar de ser uma decisão difícil de tomar por envolver um burden cirúrgico elevado para o paciente, pode ser a melhor solução em termos de prognóstico e de manutenção de qualidade de vida para o mesmo.
Agradecimentos
Ao grupo de trabalho do 14.° Simpósio do Grupo de Estudos de Cancro da Cabeça e Pescoço (GECCP) por fomentar a partilha científica e coligar com Sociedade Portuguesa de Oncologia no sentido da publicação dos trabalhos expostos no referido simpósio.
À Sociedade Portuguesa de Oncologia (SPO) pela oportunidade de publicação dos trabalhos apresentados no 14.° Simpósio do GECCP na revista afeta à mesma.
Financiamento
Declara-se que o presente artigo não recebeu qualquer tipo de financiamento, subsídio ou apoio financeiro de instituições públicas, privadas ou organizações sem fins lucrativos.
Conflito de interesses
Todos os autores declaram a ausência de conflito de interesses que comprometam a integridade deste trabalho.
Considerações éticas
Proteção de pessoas e animais. Os autores declaram que para esta pesquisa não foram realizados experimentos em seres humanos nem em animais.
Confidencialidade, consentimento informado e aprovação ética. Os autores seguiram os protocolos de confidencialidade de sua instituição, obtiveram o consentimento informado dos pacientes e têm a aprovação do Comitê de Ética. Foram seguidas as recomendações das diretrizes SAGER, conforme a natureza do estudo.
Declaração sobre o uso de inteligência artificial. Os autores declaram que não utilizaram nenhum tipo de inteligência artificial generativa para a redação deste manuscrito