Introdução
Os tumores de cabeça e pescoço representam um desafio significativo na oncologia. Apesar dos avanços no tratamento, até 50% dos doentes desenvolve recidiva loco-regional ou segundos tumores primários, sendo as opções terapêuticas limitadas1,2.
A cirurgia é o gold standard, sendo a re-irradiação uma opção terapêutica a considerar, especialmente quando a cirurgia não é possível ou como tratamento adjuvante pós-cirúrgico1–3.
A re-irradiação é uma abordagem terapêutica complexa e envolve riscos consideráveis de toxicidade, aumentando a probabilidade de efeitos secundários graves, como necrose de tecidos moles ou ósseos, blowout da carótida, mielopatia, entre outros4,5. Por isso, a seleção cuidadosa dos doentes, bem como o planeamento rigoroso do tratamento, são essenciais para otimizar os resultados e minimizar os riscos2,3,5.
Nos últimos anos, os avanços das técnicas de radioterapia (RT), como a RT de intensidade modulada (IMRT) e a RT estereotáxica, têm permitido uma re-irradiação mais precisa e segura2,6,7.
A seleção cuidadosa dos doentes é crucial. Esta baseia-se nas características do tumor, bem como na avaliação prognóstica2,5. Ferramentas como a classificação RPA desenvolvida pelo MIRI Collaborative são úteis neste processo5.
As recidivas que ocorrem na área irradiada em menos de seis meses após o primeiro tratamento de RT apresentam geralmente doença resistente à radiação e, geralmente, não são consideradas candidatas para um segundo tratamento com RT3.
Os doentes com baixa probabilidade de atingirem uma sobrevivência livre de progressão ou sobrevivência global superior a 2 anos devem ser poupados da morbilidade associada a uma cirurgia agressiva e/ou re-irradiação com dose elevada3,5. Nestes casos, recomenda-se priorizar uma abordagem com terapia sistémica combinada com re-irradiação paliativa ou best supportive care3.
Caso clínico
Homem de 80 anos com antecedentes de carcinoma pavimento celular da epiglote, submetido em Março de 2012 a faringolaringectomia supraglótica direita e linfadenectomia cervical bilateral, estádio pT2N2bM0, com margem R1. Realizou quimiorradioterapia adjuvante em Maio de 2012, com dose de 66Gy em 33 frações. Permaneceu em vigilância sem evidência de doença durante mais de 10 anos.
Em Março de 2023, na consulta de otorrinolaringologia, referiu episódios de hemorragia por via oral com 1 mês de evolução. Ao exame objetivo, foi observada uma lesão vegetante pediculada na base da língua à direita, a qual foi biopsada e cuja histologia revelou epitélio pavimentoso com alterações suspeitas de displasia. A tomografia computorizada (TC) do pescoço identificou uma lesão exofítica captante na base da língua à direita, sem adenopatias laterocervicais (Fig. 1).

Figura 1. Lesão vegetante na base da língua à direita em TC (corte sagital) antes da RT.
Classificado como RPA classe I (melhor prognóstico), o doente foi submetido a excisão da lesão em Abril de 2023. O diagnóstico histológico revelou tratar-se de carcinoma pavimentocelular invasivo de morfologia basalóide, pT1N0, com invasão linfovascular e margem positiva. Posteriormente, foi submetido a re-irradiação com a técnica de IMRT, na dose de 66Gy em 33 frações, sobre o leito cirúrgico (Fig. 2). Durante o tratamento, não apresentou dermatite ou mucosite mas desenvolveu xerostomia e disgeusia grau 2, que melhoraram progressivamente após o término do tratamento.

Figura 2. Distribuição da dose de 66Gy em colorwash do tratamento de RT (corte sagital).
Na TC de reavaliação, realizada aos 6 meses após RT, não foram identificadas lesões captantes na base da língua, nem sinais de recidiva tumoral ou condronecrose (Fig. 3). No entanto, ao exame objetivo o doente apresentava uma úlcera necrótica na valécula direita. Foi submetido a microcirurgia endolaríngea com biópsia da valécula direita que revelou apenas inflamação reativa radiogénica. Nas avaliações subsequentes observou-se uma melhoria gradual da úlcera. Aos 17 meses de follow-up a restante endolaringe permanece sem alterações significativas e não existe evidência clínica e imagiológica de recidiva loco-regional.

Figura 3. TC (corte sagital) aos 6 meses após RT, sem lesões captantes ou sinais de recidiva.
Discussão
Este caso ilustra os desafios no tratamento de doentes com segundos tumores primários de cabeça e pescoço, particularmente em doentes previamente tratados com cirurgia e RT. A decisão de re-irradiar requer uma avaliação cuidadosa dos riscos e benefícios potenciais3,5.
A classificação RPA do MIRI Collaborative demonstrou ser uma ferramenta valiosa na seleção multidisciplinar do tratamento. No presente caso, a classificação do doente como RPA classe I apoiou a decisão de um tratamento mais agressivo. Estudos demonstram que doentes da classe I apresentam uma sobrevivência global mediana de 30,4 meses após re-irradiação, em comparação com 14,2 meses para a classe II e 5,9 meses para a classe III2,5. Esta estratificação é importante para identificar doentes que mais provavelmente se beneficiarão da re-irradiação.
A re-irradiação com IMRT mostrou-se uma opção terapêutica eficaz, permitiu o controlo local da doença, sem evidência de recidiva no primeiro ano e meio de follow-up, como descrito na literatura5,6,7. A re-irradiação proporciona controlo local e sobrevivência prolongada em doentes cuidadosamente selecionados com tumores de cabeça e pescoço recorrentes ou com um segundo tumor primário1,3,7. Uma meta-análise realizada em 2020 demonstrou taxas de controlo local de 51,4% e uma sobrevivência global de 43,2% em 2 anos em doentes com tumores de cabeça e pescoço recorrentes ou secundários submetidos a re-irradiação com IMRT7. Estes resultados corroboram a eficácia observada no caso apresentado.
Apesar dos efeitos secundários observados, como xerostomia, disgeusia e necrose de tecidos moles, o doente apresentou boa resposta ao tratamento, com melhoria progressiva dos sintomas. Estes efeitos secundários são consistentes com os riscos conhecidos da re-irradiação4,8,9. A toxicidade tardia grau 3 ou superior ocorre em cerca 30% dos doentes re-irradiados, com a osteonecrose sendo a mais comum (11%)4,8,9. No entanto, a melhoria progressiva dos sintomas no caso apresentado sugere uma toxicidade aceitável e gerível.
Avanços nas técnicas de re-irradiação, como a RT estereotáxica corporal (SBRT), oferecem novas possibilidades para melhorar os resultados, destacando o potencial de administrar doses mais elevadas com menor toxicidade3,6.
A vigilância contínua é essencial, não apenas para a deteção precoce de recidivas e segundos tumores primários, mas também no tratamento de complicações tardias1,3,9.
Conclusão
Este caso demonstra que a re-irradiação pode ser uma opção eficaz no tratamento segundos tumores primários em cabeça e pescoço, em doentes cuidadosamente selecionados, sendo a classificação RPA do MIRI Collaborative uma ferramenta útil na seleção multidisciplinar do tratamento.
O uso de técnicas avançadas como IMRT pode proporcionar um controlo local satisfatório com toxicidade aceitável. No entanto, mais estudos são necessários para se otimizar os protocolos de re-irradiação e melhorar os resultados a longo prazo.
Reforça ainda, a importância da vigilância contínua para a deteção precoce de possíveis recidivas, segundos tumores primários ou complicações tardias.
Financiamento
Os autores declaram que nenhum financiamento foi recebido para a preparação deste artigo.
Conflito de interesses
Os autores declaram não haver conflito de interesses.
Considerações éticas
Proteção de pessoas e animais. Os autores declaram que para esta pesquisa não foram realizados experimentos em seres humanos nem em animais.
Confidencialidade, consentimento informado e aprovação ética. Os autores seguiram os protocolos de confidencialidade de sua instituição, obtiveram o consentimento informado dos pacientes e têm a aprovação do Comitê de Ética. Foram seguidas as recomendações das diretrizes SAGER, conforme a natureza do estudo.
Declaração sobre o uso de inteligência artificial. Os autores declaram que não utilizaram nenhum tipo de inteligência artificial generativa para a redação deste manuscrito.